Redescobrir a fotografia<br>redescobrindo Carlos Relvas (2)

Manuel Augusto Araújo
Um negativo fotográfico ou uma fotografia digital possibilitam, por definição, um número infinito de reproduções. Assim sendo, e na ausência de uma impressão de referência controlada ou realizada pelo autor, dizer-se que o negativo «se lê como uma partitura», é uma afirmação feliz e exacta que nos pode conduzir a conclusões inesperadas e contrárias aos que defendem que só a prova do artista é a única com qualidade e rigor o que é a negação do que é a fotografia e, por extensão, a das artes que se definem pela sua reprodutibilidade mecânica.
No entanto, entre as diversas artes que tem como uma das suas principais características o não serem objectos únicos existem assinaláveis diferenças. Na gravura, com excepção da serigrafia, o trabalho do artista não pode ser dissociado do seu resultado porque é ele que trabalha directamente a matriz e controla a tiragem. Já na fotografia o negativo acaba por se autonomizar em relação ao seu autor e pode ser reproduzido até ao infinito com um mínimo de nuances entre provas. Na escultura, o fabrico dos múltiplos, as medalhas por definição e outras por opção, é feito pela oficina a quem foram confiados os moldes mas os múltiplos, à semelhança da gravura, tem tiragens determinadas pelos autores que aprovam o resultado da execução. A música é um caso muito singular de hibridismo. A distância entre uma obra passada a escrito para a pauta e a sua execução é enorme e pode ser efectuada sem a participação do seu autor, sendo mesmo possível que nunca ouça no seu sentido literal, porque, como é evidente, quando a escreve está a «ouvi-la»(*). Mesmo antes da invenção do registo sonoro as pautas circulavam e os resultados da sua execução podiam escapar integralmente aos seus autores, e a história da música revela que a não existência de registos sonoros de grande parte da música escrita, desde que começou a ser escrita, não permite comparações entre as diversas interpretações actuais e as interpretações originais, pelo o que se compara, registos fonográficos ou concertos ao vivo, são leituras que estudam e procuram o rigor musicológico e perseguem a excelência interpretativa. Actualmente a publicação de uma partitura é quase coincidente com a sua reprodução em concerto e com o seu registo sonoro, o que possibilita verificar que um interprete, várias e não poucas vezes, músico instrumental ou regente de orquestra, transcende os registos feitos ou dirigidos pelos próprios compositores. E esta é a questão que se quer abordar em relação à exposição de Carlos Relvas e à afirmação de que «reproduzir um negativo é como interpretar uma pauta de música».
Em milhares de negativos muitos não têm nenhuma referência. Nem uma prova, mesmo deteriorada, feita pelo fotógrafo nem uma qualquer reprodução impressa, pelo que há que trabalhar no quadro dos parâmetros históricos, sociais e estéticos que possibilitem uma interpretação o mais rigorosa possível do negativo mas que abre o campo à criatividade do fotógrafo que o vai reproduzir. Os paralelos com a música são evidentes: o fotógrafo torna-se, à imagem e semelhança de um pianista ou de um maestro um criador que, dentro de um quadro rigoroso de referências, trabalha a matéria prima existente: num caso o negativo, no outro a pauta.
Mas mesmo nesse caso o mesmo intérprete pode evoluir a sua interpretação: entre a primeira e a segunda gravação da Paixão segundo S.Mateus de J.S.Bach por Herreghewe ou por Harnoncourt as diferenças são substanciais e sê-lo-iam mesmo que os elencos musicais fossem os mesmos(**). Do mesmo modo parece-nos legítimo que o fotógrafo José Pessoa que hoje interpretou da forma que estão expostos os negativos de Carlos Relvas, daqui a uns anos e com o evoluir do trabalho de investigação e de classificação do espólio de C.R. que com Vitória Mesquita está a fazer, reveja os seus critérios actuais e imprima os mesmos negativos por outros critérios. Arriscamos mais, mesmo com o risco de sermos considerados iconoclastas: podemos mesmo esperar que José Pessoa ou outro fotógrafo que se dedique a estudar a obra de Carlos Relvas, interpretando um dos negativos de que exista uma prova do autor obtenha um resultado melhor do que o original, que é e continuará a ser a referência. Voltemos à música: a Sagração da Primavera de Stravinsky dirigida pelo autor é excelente mas não se compara à sublime interpretação dirigida por Pierre Boulez.
Os negativos são as pautas da fotografia pelo que podemos sempre esperar que um intérprete ultrapasse o compositor/autor. Quem isto não aceita é por estar a defender, em transe, os valores de mercado das «vintage prints» e das provas de autor e não percebe que o valor das provas é relativo e o valor real e não contigente está nos negativos.


(*) Caso extremo é o de Beethoven que «ouvindo» o que escreveu nunca ouviu de facto a execução de parte substancial da sua música.
(**) Comparem-se as gravações de Gustav Leonhard dos anos 50 com as suas mais recentes interpretações do mesmo repertório, as múltiplas e bem diferenciadas leituras(Pollini, Uchida, Gould, Zimmerman, ou Yvonne Loriod) das Variações op.27 de Webern, ou as múltiplas, embora bem menos diferenciadas, leituras das Variações Diabelli de Beethoven (Pollini, Richter, Brendel, Schnabel, Demus, Barenboim ou Michelangelo Benedetti),as Variações Goldberg de J.S.Bach por Gould nos anos 50 e nos 80. Relembre-se o conhecido facto de Sviastoslav Richter, que nunca manteve exclusivo com nenhuma editora e que privilegiava as gravações ao vivo, obrigar as editoras discográficas a retirarem do mercado as interpretações que ele considerava serem piores que uma mais recente ou a não colocarem no mercado uma que ele considerasse inferior a outra já existente.


Mais artigos de: Argumentos

A <em>manif</em> no Largo Conde do Pombeiro

O exacerbamento das contradições imperialistas coloca a humanidade, repetidamente, em perigo, face à previsível deflagração de novas guerras. Definem-se estratégias, estabelecem-se cenários, listam-se as novidades tecnológicas a experimentar no teatro de operações, estima-se a carnificina bem como os lucros dela...

A reforma pastoral das paróquias (3)

O Santuário de Fátima caracteriza-se, como se pôde ver, pela sua riqueza, pela sua organização empresarial, pela sua localização privilegiada e pela rigidez da sua cadeia de comando. Dispõe, ainda, de uma larga banda «cinzenta» de actuação onde se cruzam os privilégios que a Concordata lhe confere, a não apresentação de...